segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O USO MINISTERIAL DO TEATRO NA IGREJA

Por Jolsemar dos Reis Araújo

****Texto postado originalmente nos extintos blogs da Escola Ministerial de Artes e do MAVIN do Projeto Vida Nova de Irajá(há um atual http://mavinpvni.wordpress.com/) com ligeiras adaptações****


A palavra 'teatro' vem do grego (theatron) e designa o lugar onde se assiste a um espetáculo, seus espectadores ou o próprio espetáculo. A palavra é etimologicamente formada por théa 'espetáculo, vista, visão' mais o sufixo -tron 'instrumento', significando literalmente 'meio pelo qual se realiza um espetáculo'. Mais que o local, 'teatro' designa a arte do ator e da atriz, a dramatização, a representação e os meios e recursos humanos para a concretização do espetáculo.


Os historiadores da arte assinalam que desde seus primórdios o ser humano usou da dramatização para expressar suas crenças e valores. Entendendo que força e determinação não eram suficientes para assegurar sua sobrevivência, os povos primitivos usavam danças imitativas visando angariar o favor e proteção de Deus ou dos supostos deuses que controlavam todos os fatos necessários à sua sobrevivência (fertilidade, família, êxito nas batalhas, etc). Sendo assim, o teatro em suas origens possuía um caráter religioso, espiritual. Esse teatro primitivo constituía-se de danças dramáticas coletivas que tratavam das várias questões da vida. Ao lado, pintura rupestre em Lérida, Espanha, representando uma dança ritual primitiva. Com o tempo os humanos começam a desenvolver suas crenças e filosofias bem como sua tecnologia e arte. Sem a revelação do Deus bíblico ou dela prescindindo, os homens elaboram mitos, sagas cósmicas politeístas, que visavam explicar a origem, a manutenção e o sentido da vida e passam a dramatizar esses mitos inicialmente através das danças miméticas, isto é, compostas por mímica e música.

Em civilizações mais desenvolvidas, como a egípcia e as mesopotâmicas, os pequenos ritos tornaram-se grandes rituais formalizados. Esses rituais eram a história do mito em ação, isto é, em movimento. Eles propagavam as tradições e serviam como entretenimento. Na Grécia, a partir da evolução da dramatização dos mitos, surge o embrião d teatro moderno. Inicialmente havia o ditirambo, um tipo de procissão informal que servia para homenagear o deus Dionísio (deus do vinho). Ao lado, representação de Dionísio. O ditirambo evoluiu dando origem a um coro onde os componentes cantavam, dançavam e contavam os mitos relativos a Dionísio. A grande inovação deu-se quando se criou o diálogo entre os componentes do coro. Instala-se desta forma a ação na narrativa dos mitos dando origem aos primeiros textos teatrais. Inicialmente faziam-se as representações nas ruas, passando-se para um lugar próprio. E assim surgiram os primeiros teatros. Abaixo, ruínas do teatro de Epidauro, cidade grega.

Se o teatro tem suas origens na dramatização de mitos pagãos o que ele então tem a ver coma atual prática das igrejas utilizarem o teatro como veículo de edificação e evangelização?

Nas Sagradas Escrituras vamos encontrar a palavra 'teatro' em duas ocasiões (Atos 19.29,31) significando o local de reunião de uma assembleia, porém na Bíblia não vamos encontrar o teatro no sentido de arte cênica apresentada em local próprio como espetáculo.

No Antigo Testamento, as palavras traduzidas por 'espetáculo' (mar’eh, ro’iy) significam visão, aparência, espetáculo. Há ainda a palavra zeva'ah geralmente traduzida por espetáculo horrendo. Estas palavras estão associadas ao juízo divino: quando Deus trouxer seu juízo será um espetáculo, isto é, algo notório, que servirá de símbolo, exemplo e reflexão (Deuteronômio 28.67; Jeremias 15.4; 29.18; 34.17; Naum 3.6). 

No Novo Testamento encontramos a palavra theatron (1Coríntios 4.9) e outras dela derivadas ou correlatas significando 'espetáculo' no sentido de que algo ou alguém está sendo observado por várias pessoas e nelas causa algum efeito (Lucas 23.48; Hebreus 10.33; 12.21). Nos dias de Jesus havia um teatro em Jerusalém ( representação ao lado) construído por ordem do Rei Herodes, o Grande (73 – 4 a.C.), porém para agradar aos romanos. Embora os antigos judeus convivessem com culturas que patrocinavam as artes teatrais como a grega e a romana e em Jerusalém houvesse um teatro, eles não aderiram ou incorporaram à sua liturgia e cultura esse tipo expressão artística principalmente por que muitas das peças teatrais da antiguidade eram repletas de paganismo e sensualidade. Pelo mesmo motivo os primeiros cristãos rejeitaram o teatro até que na Idade Média passaram a utilizá-lo como forma de catequese. No transcurso dos séculos vários grupos cristãos foram utilizarando as artes cênicas como veículo de propagação da fé. Devemos também observar que o fato de algo ser um elemento cultural não-judaico não impede deste ser usado a serviço de Deus. Não é sem razão que Paulo usa a poesia pagã grega para evangelizar (Atos 17.28) e exortar (Tito 1.12,13).

Não obstante a origem pagã, a essência do teatro, isto é, a dramatização, é encontrada na Bíblia através da liturgia sacerdotal e nos atos simbólicos dos profetas, inclusive os de Jesus. Não bastou a Deus dizer a Abraão que ele seria pai de uma multidão de pessoas. Deus o fez sair da tenda e ver as estrelas e disse: “Olha para os céus e conta as estrelas, se é que o podes. E lhe disse: Será assim a tua posteridade”(Gênesis 15.5). Deus usou sua arte, as estrelas, para mostrar a Abraão o que Ele pretendia realizar. Não foram suficientes as palavras. Deus quis que Abraão visse. Essa é a essência do teatro na sua origem etimológica: 'ver,' 'algo para ser visto'. O teatro como espetáculo pode ter suas raízes nos cultos pagãos; mas o uso de recursos visuais, de imagens inspiradoras, a dramatização da verdade espiritual, tem sua origem em Deus.
Imagem do telescópio espacial Hubble da NASA:
Deus usou a visão do céu estrelado para inspirar a fé de Abraão

A Liturgia Sacerdotal como Dramatização de Verdades Espirituais
O livro de Levítico registra vários tipos de rituais que os sacerdotes e os ofertantes praticavam na Antiga Aliança. Diz o Novo Testamento que esses rituais eram sombras, símbolos do mundo espiritual e de coisas que estavam para vir (Colossenses 2.17; Hebreus 8.5). Isto é: eles dramatizavam realidades espirituais. Não bastavam aos homens e mulheres da Antiga Aliança pedir verbalmente perdão a Deus por seus pecados ainda que com sinceridade. Esse pedido de perdão e aceitação era dramatizado através dos sacrifícios e da mediação sacerdotal que eram símbolos de realidades espirituais bem como de acontecimentos vindouros. As realidades espirituais do perdão, expiação, redenção, da mediação eram vivenciadas e dramatizadas pelos ritos levíticos. Abaixo, liturgia sacrificial no templo de Jerusalém (séc. I). Por exemplo, segundo estudiosos, a oferta pacífica movida perante o Senhor (Levítico 7.29-34) tinha o seguinte ritual: a porção do sacrifício destinada ao sacerdote era primeiramente colocada nas mãos do ofertante. Então o sacerdote colocava suas mãos embaixo das mãos do ofertante e as movia com a oferta para frente e para trás e para cima e para baixo. O que foi feito? Um sinal de cruz. À luz do Novo Testamento, esse rito representava ou dramatizava o vindouro sacrifício de Cristo.
A liturgia do Antigo Testamento é teatro, é dramatização de realidades espirituais.


Os Atos Proféticos
Nos Profetas vamos encontrar verdadeiras interpretações teatrais da palavra divina. Era comum entre os profetas transmitir uma mensagem mediante dramatização, que seria um recurso didático para prender a atenção dos ouvintes. Os eventos simbolizados eram uma declaração de Deus, através de seus mensageiros, daquilo que ele estava prestes a fazer ou de alguma realidade espiritual. Oséias teve que representar radicalmente o estado de infidelidade de Israel para com Deus casando-se com uma mulher adúltera (Oséias 1-3).

Exemplos de dramatizações ou ações simbólicas das mensagens divinas pelos: o discípulo dos profetas (1Reis 20.35-43), Aías de Silo (1Reis 11,29s), Isaías (Isaías 20.2-4), Ágabo (Atos 21.10-11). As ações de Jeremias e Ezequiel têm sido claramente identificadas como pantomima e teatro de rua por artistas (Rory Noland) e teólogos (Silvia Schroer e Thomas Staubli). Vejam-se o grande número de ações simbólicas e recursos visuais que eles representaram para transmitir sua mensagem profética:

Jeremias :
1. Cinto de linho escondido no Eufrates (13.1-11);
2. O oleiro e o barro (18.1-8);
3. A botija quebrada (19.1-13) ;
4. Um jugo no pescoço (27.1-8);
5. Compra do campo do parente (32.6-15);
6. A obediência dos recabitas (35.1-19);
7. As pedras escondidas (43.8-13);
8. Livro jogado no Eufrates (51.63,64).


James Tissot: The Prophet Jeremiah
O profeta Jeremias por James Tissot (1888)

Ezequiel:
1. Ele representou o cerco de Jerusalém com um tijolo (4.1-3);
2. A fome no cativeiro cozendo pão com excrementos (4.9-17);
3. A destruição pela espada cortando seus cabelos com navalha e os atirando ao vento (5.1-7);
4. A ida do povo ao cativeiro fazendo um buraco na parede para partir com suas mobílias como um deportado.(12.1-11);
5. Com uma espada afiada e polida retratou o juízo iminente sobre Jerusalém (21.1-17);
6. A vitória da Babilônia é retratada pela espada de Nabucodonosor (21.18-23);
7. A queda de Jerusalém é simbolizada pela morte da esposa (24.15-27);
8. A união de Judá e Israel pela escrita do nome de Judá e de Israel em dois bastões (37.15-28).


painting: The Vision of Ezekiel, Raphael, 1518
A Visão de Ezequiel por Rafael (1518)

Não se pode deixar de mencionar o próprio Jesus. As parábolas evocam cenas do dia a dia e a visualização delas na mente à medida que são lidas ou ouvidas. Embora não encenadas, são visualizadas na imaginação. Para ilustrar a esterilidade de uma falsa aparência ele amaldiçoa a figueira sem frutos que seca imediatamente tornando-se um símbolo vívido (Mateus 21.19-21). 

Há que se falar também do lava-pés: para mostrar como devemos servir uns aos outros Jesus se caracteriza como um escravo e faz um serviço que só escravos faziam (João 13.1-17). Não bastou a Jesus falar; ele teve que teatralizar seu ensino.

Muitos gestos simbólicos são registrados na Bíblia: mãos erguidas (Êxodo 17.8-16), virar o rosto em direção ao objeto da profecia (Ezequiel 6.1-3), marchar em círculos (Josué 6.1-20), dentre outros, concluindo-se assim a Bíblia registra que a mensagem divina e as realidades espirituais foram dramatizadas de várias formas até hoje usadas. 

Em suma, existe uma base bíblica para o uso do teatro na proclamação da Palavra de Deus.


Ministério de Teatro na Igreja
O Novo Testamento tem cinco listas de dons e ministérios (1Coríntios 12.8-10,28-30; Romanos 12.6-8; Efésios 4.11; 1Pedro 4.10,11). Muitos dons e ministérios são repetidos, outros citados uma só vez, outros não têm títulos sendo antes ações: exortar, contribuir, exercer misericórdia ou simplesmente servir como afirma o texto de 1Pedro 4.11. Disso se conclui que o Novo Testamento não tem uma lista definitiva e limitada do número de ministérios que deve haver na igreja de acordo com sua necessidade. O diaconato não surgiu de uma revelação divina; houve a necessidade de se levantar pessoas para essa função (Atos 6.1-7). Tanto é assim que todas as denominações têm ministérios ou departamentos que não são citados no Novo Testamento: Ministério de Música, Tesouraria, Ministério Infantil, Sociedades Femininas, Masculinas, Círculo de Oração, Mocidade, etc. Quantas são as necessidades da igreja tantos são seus departamentos ou ministérios. E todos terão base bíblica já que a essência de um ministério é um serviço prestado a Deus e ao próximo. 

A dramatização, como qualquer arte, é um dom divino. "Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança" (Tg 1.17). Portanto podemos utilizar esse dom a serviço do Evangelho: "Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus" (1 Pedro 4.10). Em síntese, o fato do Novo Testamento não falar de um ministério de artes não impede que haja tal ministério, tal serviço, na igreja. O fato de não haver menção no Novo Testamento ao teatro na liturgia cristã não impede deste ser utilizado, já que o mesmo não fala também de instrumentos musicais na adoração cristã de então e eles são utilizados na adoração cristã de hoje. No Novo Testamento há espaço para qualquer expressão litúrgica desde que haja decência e ordem (1Coríntios 14.40).

Tendo em vista o acima dissertado, o teatro tem sim o seu espaço na igreja cristã de hoje como expressão de adoração, edificação e estratégia evangelística. Tal uso pressupõe não apenas a vontade de interpretar, mas também aptidão técnica, trabalho em equipe, aprovação e supervisão pastoral, ou seja, a utilização contínua do teatro na igreja deve ser organizada como um ministério da igreja. 

Quando dizemos "deve" não é no sentido de ser "obrigatório", mas no sentido de que uma comunidade de fé que pretenda fazer um uso contínuo desse dom a serviço do Reino necessita organizá-lo com líderes, supervisão, adequação de agendas, capacitação técnica e espiritual.  Cada comunidade de fé conhece suas necessidades.

Cristo, na Grande Comissão, nos mandou pregar o Evangelho e fizer discípulos (Marcos 16.9-11; Mateus 28.18-20). O uso ministerial do teatro é uma ferramenta, não obrigatória, não a mais importante, mas de grande valia para cumprir a missão que o Mestre nos deixou. 

Pude vivenciar isso em 13 anos (1999-2012) que participei como ator, autor e diretor do grupo teatral do MAVIN (Ministério de Artes Vida Nova) do Projeto Vida Nova de Irajá.

Sou grato a Deus por esses preciosos anos onde vi e vivi a arte a serviço do Reino.


REFERÊNCIAS
HARRISON, R. K. Levítico: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, Mundo Cristão, 1983.
HOUAISS, Antonio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0 (CD-ROM), Objetiva, 2001.
LOURO, Fabiana. A Origem e Evolução do Teatro. Disponível em: http://liriah.teatro.vilabol.uol.com.br/historia/aorigemeevolucaodoteatro.htm
NOLAND, Rory. O Coração do Artista: construindo o caráter do artista cristão. São Paulo : W4 Editora, 2007.
PETERVELITZ, Luciano R. Introdução ao Profetismo. In: Revista Theos. 5 ed. Vol. 4. Nº 1. Campinas: Faculdade Teológica Batista de Campina, 2008. Disponível em: www.revistatheos.com.br/Artigos/Artigo_05_02.pdf
SCHROER, Silvia; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2003.

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